Pela primeira vez na história, há mais crianças e adolescentes com obesidade do que com baixo peso em todo o mundo — com exceção apenas da África Subsariana e do Sul da Ásia.
A conclusão é de um relatório da UNICEF, que estima em 188 milhões o número de jovens (entre os 5 e os 19 anos) afetados pelo excesso de peso.
À primeira vista, este dado poderia parecer sinal de progresso — menos fome, mais acesso a alimentos. Mas a realidade é outra: a insegurança alimentar mudou de forma. Já não se traduz apenas em falta de comida, mas em excesso de alimentos pobres em qualidade nutricional, fortemente marcados por desigualdades económicas e sociais.
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Os dados que mudam a narrativa
De acordo com a UNICEF e a Organização Mundial da Saúde (OMS):
• Em 2000, quase 13 % das crianças e adolescentes tinham baixo peso, enquanto 3 % apresentavam obesidade.
• Em 2025, as proporções inverteram-se: 9,2 % com baixo peso e 9,4 % com obesidade.
• A obesidade já ultrapassou o baixo peso em praticamente todas as regiões do globo.
• Nas crianças mais novas (com menos de 5 anos), a subnutrição ainda é uma realidade séria, mas o excesso de peso também cresce rapidamente.
Estes números traduzem uma transição nutricional global: do défice energético à abundância calórica — sem que a qualidade alimentar tenha necessariamente melhorado.
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Porquê este fenómeno?
A ciência é clara: a obesidade infantil não é apenas resultado de “más escolhas individuais”. É um problema estrutural e multifatorial, onde biologia, ambiente, economia e política se cruzam.
1. Ambientes alimentares obesogénicos
Vivemos rodeados de alimentos ultraprocessados — ricos em açúcar, gordura e sal, pobres em nutrientes e muito acessíveis.
O marketing dirigido a crianças, especialmente no digital, cria uma pressão constante para o consumo.
Campanhas coloridas, influenciadores infantis, embalagens com personagens e brinquedos como brindes tornam difícil resistir — sobretudo quando os produtos frescos são mais caros ou menos disponíveis.
2. Sedentarismo e tempo de ecrã
As cidades tornaram-se menos seguras e as rotinas mais sedentárias.
As brincadeiras ao ar livre foram substituídas por horas de ecrã, e a atividade física deixou de fazer parte natural do dia.
O resultado é um desequilíbrio energético prolongado: mais energia ingerida, menos energia gasta.
3. Desigualdades sociais e económicas
Nos países de baixo e médio rendimento, coexistem a desnutrição e o excesso de peso — o chamado “duplo fardo”.
As famílias com menos recursos têm menos acesso a alimentos frescos e mais exposição a produtos baratos e ultraprocessados.
O stress económico e a insegurança alimentar (oscilar entre falta e abundância) agravam ainda mais o risco de obesidade.
4. Fatores biológicos e genéticos
A genética influencia a forma como o corpo regula o apetite e armazena gordura, mas o ambiente é o principal gatilho.
Num contexto obesogénico, mesmo pequenas predisposições genéticas têm grande impacto.
5. Falhas políticas e regulação insuficiente
Em muitos países, as medidas de prevenção são frágeis:
• falta de regulação eficaz da publicidade alimentar dirigida a crianças;
• rotulagem pouco clara;
• ausência de políticas fiscais que penalizem bebidas açucaradas e promovam frutas, legumes e leguminosas;
• escolas com oferta alimentar pouco saudável.
O resultado é um ambiente que empurra para a obesidade e raramente favorece escolhas saudáveis.
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Consequências: mais do que uma questão de peso
A obesidade infantil não é apenas estética — é uma doença crónica multifatorial com impacto a curto e longo prazo.
• Aumenta o risco de diabetes tipo 2, hipertensão e problemas cardiovasculares ainda na adolescência.
• Está associada a dores articulares, distúrbios respiratórios e alterações hormonais.
• Afeta a autoestima, promove estigmatização social e aumenta o risco de depressão e ansiedade.
• Representa custos elevados para as famílias e sistemas de saúde, devido a doenças precoces e maior utilização de cuidados médicos.
Além das consequências clínicas, há um efeito invisível: a normalização.
Num mundo onde o excesso de peso se torna cada vez mais comum, corre-se o risco de perder a noção do que é saúde — e de ignorar as desigualdades que o sustentam.
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O que estes dados não significam
É importante interpretar as estatísticas com cuidado:
1. A subnutrição não desapareceu. Em muitas regiões, sobretudo entre as crianças pequenas, o atraso de crescimento e a carência alimentar continuam graves.
2. O excesso de peso não é sinónimo de bem-estar — muitas crianças obesas vivem em contextos de pobreza nutricional e insegurança alimentar.
3. O Índice de Massa Corporal (IMC) é apenas um indicador: não distingue gordura de massa muscular e deve ser interpretado com rigor clínico.
4. Não se trata de culpar famílias — o problema é sistémico e exige resposta política e social, não apenas individual.
5. Campanhas focadas em “perder peso” sem sensibilidade podem agravar distúrbios alimentares e estigmatização.
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Soluções baseadas em evidência
A ciência tem mostrado caminhos eficazes, mas exigem vontade política e coordenação social:
1. Políticas públicas fortes
• Restringir a publicidade de alimentos ultraprocessados dirigida a menores.
• Rotulagem nutricional frontal simples e clara.
• Taxar bebidas açucaradas e produtos ultraprocessados, usando a receita para subsidiar alimentos frescos.
• Normas obrigatórias nas escolas: refeições equilibradas, exclusão de junk food e bebidas açucaradas.
2. Ambientes que promovam movimento
• Espaços públicos seguros, ciclovias, parques e programas escolares de atividade física.
3. Literacia alimentar
• Educação nutricional desde cedo — aprender a cozinhar, ler rótulos, compreender publicidade.
• Envolvimento das famílias e das comunidades.
4. Acompanhamento clínico e psicológico
• Programas integrados, com nutricionistas, psicólogos e educadores.
• Abordagens personalizadas, sem dietas restritivas nem estigma.
5. Responsabilização da indústria e monitorização
• Avaliação contínua das políticas.
• Transparência nas práticas da indústria alimentar.
• Investigação e vigilância epidemiológica ativas.
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Um olhar final: entre o excesso e a carência, um mesmo problema
A manchete “há mais crianças obesas do que subnutridas” não é um marco de sucesso — é um alerta profundo sobre a forma como alimentamos o mundo.
Estamos a viver uma nova forma de desigualdade nutricional: não é a fome que mata, é o que a substitui.
A abundância aparente esconde carências reais — de nutrientes, de tempo, de literacia e de políticas que protejam a infância.
O futuro dependerá das escolhas que fizermos agora.
Porque uma geração inteira não pode ser refém de um sistema alimentar que lucra com a doença.
E porque alimentar bem uma criança é muito mais do que encher um prato — é garantir-lhe saúde, dignidade e futuro.

