“Adorar como fazem os adultos!  Fingir estados de alma inanimados. Despertar as  emoções que querem calar fundo mas, num breve instante controlado, de repente, já se desvanecem. À procura de um novo despertar, inconsistente. E das repetições que, sem encher as horas, iludem o tempo e a vontade…  Adorar à superfície das palavras, vazias e fugazes, sem futuro…

Adorar como fazem as crianças! De olhar limpo e inocente. Com o brilho no olhar e o calor nos gestos. Ávidas de uma igual resposta,  apetecida. Sem querer senão amar e ser amadas. Com a palavra solta e muita emoção à flor da pele. Com a verdade nua e crua de que só a inocência é capaz.”

Este texto foi escrito por alguém que amo mais que a própria vida. Alguém que me deixa invariavelmente a pensar…
E este é um tema que muito me inquieta. Intriga-me o amor volátil que nos “prende” temporariamente hoje em dia. Temporariamente. Num tempo que tantas vezes não permite passar mais que um ou dois Natais juntos. Isto, se lá chegar!
Entristece-me esta falta de consistência, muitas vezes dou por mim a pensar que o problema é a pouca maturidade, a insatisfação constante, a necessidade – infantil – de mudança, de novidade. Mas nem sempre é assim. É injusto avaliar sem conhecer o que vive dentro de cada um de nós, o nosso passado, os receios, o fardo que transportamos…
Tantas vezes fomos criando um conto de fadas na nossa mente, que procuramos o príncipe encantado insistentemente. Mas o castelo que conseguimos construir – e “conseguimos” nem sequer devia aparecer aqui – , tantas vezes com a ânsia de finalmente acertar, após repetições sucessivas de relações fracassadas, é de lã. E é fácil perder a ponta do novelo de lã que tece esse castelo e parece que há tendência, tantas outras vezes, a criar várias pontas, todas soltas!
Há uns meses li uma entrevista da minha querida Júlia Pinheiro em que dizia «Abomino a ideia do príncipe encantado. Sou contra. Se existir algum vamos abatê-lo». A verdade é que não existem, assim como nós, mulheres, estamos longe de ser as princesas desses contos de encantar. Mas o que eu acho mesmo é que nos colocámos num pedestal, tornámo-nos egoístas e passámos a ter como certo e incontestável o facto de merecermos “o melhor”. Tanto homens como mulheres. Merecemos, claro. Ouvimos histórias de amigos e parece-nos praticamente impossível permitirmo-nos estar naquelas situações constrangedoras, que “revelam falta de amor próprio” – afinal somos os melhores e terão que nos prestar uma espécie de vassalagem, se querem ter o privilégio de ficar ao nosso lado. Pois… Mas não somos! Temos mil defeitos, se não for o mau acordar, é a necessidade de dormir demais, perdendo momentos importantes a dois, como assistir a um filme agarradinhos, durante a semana. Se não for o não chegar a casa a tempo de ajudar a fazer o jantar, é o ligar a televisão no momento da refeição, criando um silêncio ensurdecedor.
Dizia eu que nem sempre é assim, claro que não, mas a maior parte das vezes não somos tão condescendentes como deveríamos ser. A pessoa com quem nos sentimos bem não tem que ter também umas mãos lindas porque sempre o valorizámos ou porque o João, o Francisco ou a Maria têm. Sim, há aparentemente muitas opções à nossa mercê, mas se não nos dedicarmos inteira e puramente a cada pessoa, como poderemos apaixonar-nos longamente por ela? Fará sentimos dispersarmo-nos, não seremos muito mais felizes dedicando-nos a um mundo singular? Entendo que tantas vezes nos convençamos de que, se não nos permitirmos criar laços fortes, não estaremos vulneráveis, à mercê do sofrimento. Não. Não! Não viveremos, assim.  Seremos reféns de regras, manipuladores da nossa própria existência.
O “amor” dos adultos começa muitas vezes com uma carga que consciente ou inconscientemente modifica cada dia e o que devia ser livre, é controlado. “Não vou enviar mensagem para ver se ele se lembra de mim.” “Vou aparecer com uma amiga no café onde ela costuma estar à noite, para que fique na duvida e me valorize.” Que raio de histórias estas que criamos e cujo enredo cansa e nada pode trazer de puro!
O amor das crianças é uma benção! Não traz esse lixo tóxico que são as nossas teorias acerca das relações e do comportamento humano. Não traz o medo do indeterminado e a necessidade de protecção. Traz apenas a entrega, a ingenuidade, a espontaneidade que apaixona.
Não são as gargalhadas limpas que nos prendem? Os pequenos gestos puros sem necessidade de manifestações exageradas? O que nos prende uma vida inteira é o amor desinteressado, aquele que não se esconde, mas que não é pensado, simplesmente se sente e tudo flui. É o único amor que existe: o que sentem as crianças! É esse que devemos copiar…
Bem sei o quão desprotegidos ficamos quando nos entregamos assim. O amor que sentem as crianças é tão indefeso como elas mesmas… Assusta, assim, mas não será essa a razão pela qual é também tão maravilhoso?
O desafio é que nós, adultos, marcados pela vida, consigamos limpar a alma e amar outra vez de forma simples e pura, como já fizemos, como fazem as crianças!
Ilustração de João Rodrigues.
Author

Nutricionista: amante do tipo de cozinha que procura aliar saúde aos melhores sabores; Mulher: apaixonada pela verdadeira beleza das coisas mais simples; Objectivo: ser feliz na medida do possível, gostar de mim todos os dias e ajudar quem me segue, nesse mesmo caminho.

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