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O dia correu bem. Levei as minhas marmitas que adoro, em que imperam as cores da fruta e dos legumes, os sabores familiares que me confortam. Não passei horas sem comer – o que, entre consultas, nem sempre é fácil. Consegui resistir à fatia de bolo com que me tentaram… Ouvi as minhas meninas da clínica falarem de doces – a minha tão antiga perdição! –, mas desviei a atenção para a consulta seguinte. Quando estou em consultas, todo o mundo lá fora e até o meu próprio deixam de existir.

Tudo certo. Tudo controlado. Tudo a correr – muito – bem. 

Só tive mulheres nas consultas desse dia, umas com tpm (tensão pré-menstrual), outras sofrendo de maior ansiedade, outras tristes e outras querendo celebrar a alegria. Admiro as Mulheres, somos feitas do tecido da sensibilidade e fragilidade, mas temos força de leoas! – Todas foram ter comigo com a preocupação de uma maior disciplina alimentar. Todas, nessa tarde, com tendência a doces, especialmente a chocolate. Acho graça a conhecer pessoas tão loucas por chocolate quanto eu… Lê-se o desejo no olhar, quando falam sobre ele e a felicidade quando eu, por fim, as descanso: “não terá que abdicar para sempre, vamos antes limitar a uma vez por semana, combinado?” Entre descrições e confissões, a minha capacidade de resistência é posta à prova vezes sem conta. Às vezes resisto a ir ao café ao lado convencendo-me de que à noite, já em casa, me permitirei uma extravagância; outras, confesso, peço às minhas meninas para me irem buscar uma pequena barra de chocolate negro, como se fosse para elas, que divido antes que a devore. Gosto de ter na mala aquelas tortilhas de milho com fio de chocolate negro que são quase perfeitas para acalmar o desejo do doce por o associarem a uma textura crocante. Mas nem sempre corre bem, são boas demais, há dias em que, se mexo na mala e sinto o barulhinho do plástico da embalagem, não consigo deixar de o ouvir até comer uma. E outra, já agora, não vá ficar perdida e ainda me suja a carteira. O pacote traz duas, ou partilhamos ou comemos ambas. 

A última Paciente chegou um pouco mais tarde do que era suposto. Vinha tão apressada quanto faladora. Conversámos muito e acabou descrevendo o quanto lhe ia custar não comer o seu bolo de chocolate. “Calha-me mesmo bem, é fofo e na boca provoca uma explosão de chocolate. Foi assim, tal e qual, “uma explosão de chocolate”, que se grudou à minha cabeça. Que vontade de lhe sentir o gosto!

Ufa! Chegou a hora de ir para casa. A senhora insistiu em me deixar a receita, que delicadamente guardei na gaveta da secretária. 

A caminho de casa, a pé, fui aproveitando os últimos raios do sol já muito envergonhado e desisti daquele pensamento doce.

Cheguei a casa, aproveitei a varanda e depois preparei o jantar: salada de salmão com quark, estava deliciosa! Penteei os gatos. Li. Pousei o livro e ouvi o telejornal. Voltei ao livro. “O chocolate.” “Não, o livro.” “O chocolate.”

Levantei-me do sofá, arranjei tudo para me deitar, lavei os dentes para garantir que o assunto ficava tratado e espreguicei-me naquele primeiro momento em que senti o corpo deitado, desfazendo-se da tensão da posição vertical. Senti a cabeça na almofada, deixei o silêncio embalar-me e… “Chocolate.” É incrível como a mente pode ter uma voz tão ensurdecedora.” Sentei-me na cama: “Ana, como nutricionista, o que aconselharias a ti mesma?” “Come um ou dois quadrados. Já o podias ter feito e não adiavas para este momento em que chega a parecer uma fraqueza.” Levantei-me e comi. Dois quadrados. Voltei a lavar os dentes e adormeci em segundos.

 

Quando temos um desejo alimentar, quando não nos sai da cabeça, mais vale permitirmo-nos saboreá-lo, com o cuidado de limitar a quantidade. Parar, comer calmamente, sem outra distracção que não a do sabor que ansiávamos. Há dias em que tentar resistir não é o melhor caminho, parece que a comida – neste caso o produto alimentar – grita na nossa cabeça e ecoa hora após hora. Muitas vezes procuramos outros alimentos ou produtos alimentares para tirar aquele da cabeça, mas tantas delas é até pior a emenda do que o soneto. Não lhe aconteceu já ter vontade de comer uma Oreo e andar a petiscar fruta, oleaginosos e a picar bolachas Maria para a evitar? Mas nada lhe enche as medidas, “não era bem isto”… Quando se apercebe, já ingeriu mais calorias do que se tivesse ido directa ao objecto do seu desejo e teria afastado esse fantasma do seu dia.

O que digo é, com bom senso, devemos gerir os nossos desejos alimentares. “Nem sempre nem nunca” e no momento certo é o ideal. Pouca quantidade, mas saboreada como se fosse a maior das refeições. Depois, voltemos ao nosso dia, à disciplina alimentar. 

Sem obsessões e dificuldades de maior, o caminho é simples e a educação alimentar torna-se uma verdadeira filosofia de vida.